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O IMPACTO DA CRISE HÍDRICA NA SAÚDE PÚBLICA




Denise Maria Elisabeth Formaggia -

Engenheira Civil pela Universidade Mackenzie, com especialização em engenharia de Saúde Pública pela USP e engenharia sanitária industrial pela FAAP. Trabalhou na Secretaria de Estado da Saúde/SP de 1983 a 2011. Foi consultora do Ministério da Saúde e OPAS para assuntos referentes à qualidade da Água para consumo humano. Atualmente é membro benemérito do Comitê de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte de SP



Além da pandemia de Covid 19, da crise econômica e da situação política do país, o que mais tem chamado a atenção da mídia em geral e das pessoas em particular, é a denominada “Crise Hídrica”. O Brasil convive de tempos em tempos com secas que levam à escassez de água em seus diversos usos.

Recentemente o superintendente de Regulação dos Recursos Hídricos da ANA – Agencia Nacional de Água e Saneamento – Patrick Thomas, lembrou que o Brasil enfrenta crises hídricas desde 2012, como no Semiárido (2012 ano de início), bacia do rio São Francisco (2013), Paraíba do Sul (2014), Alto Tietê (2014), Piracicaba, Capivari e Jundiaí (2014), Tocantins-Araguaia (2016), Distrito Federal (2016), São Mateus (2016) e Pardo (2016).


Considerada a crise hídrica mais severa em 91 anos, o impacto da escassez hídrica traz graves consequências para o desenvolvimento de um país, na medida em que afeta a produção agrícola (reconhecidamente a maior demanda por água devido à irrigação), pecuária, indústria, abastecimento de água, turismo e lazer.


Especialistas e economistas discorrem horas e horas sobre o impacto econômico e social da atual crise, mas pouco se tem falado sobre o seu impacto na Saúde Pública. A falta de água para abastecimento público, certamente causa transtornos na rotina de milhões de pessoas, notadamente as mulheres, na lida doméstica diária. Sem mencionar o setor de alimentos que necessitam de água em quantidade e qualidade para a higienização e confecção dos alimentos.

Caso o abastecimento público de água para consumo humano seja efetuado por meio de manancial subterrâneo, o impacto da crise hídrica será menor ou quase nulo, uma vez que os aquíferos subterrâneos são afetados em menor grau pela seca (o mesmo não ocorre com poços freáticos que são alimentados pelo regime de chuvas).

As cidades abastecidas primordialmente por mananciais de superfície são as mais afetadas pela crise hídrica, tendo em vista a necessidade dos governos estabelecerem medidas mais drásticas como o rodízio no fornecimento de água para consumo humano. Além do transtorno ocasionado por esta prática (muitas vezes necessária em função da situação dos mananciais de superfície), o maior problema do ponto e vista sanitário é a pressão negativa na rede de abastecimento, possibilitando a entrada de água do exterior da canalização, contaminando o sistema de distribuição. Os serviços de abastecimento público de água, para minimizar esta possibilidade, são obrigados a aumentar o teor de cloro residual livre na rede, com o objetivo de eliminar os microrganismos patogênicos que eventualmente adentrem na rede de distribuição, o que nem sempre é possível a depender do teor de cloro, do tipo e concentração de microrganismos presentes na água.

A crise hídrica tem um impacto perverso nas camadas da população mais vulnerável, especialmente aquelas que em tendo acesso à um sistema público de abastecimento, não possuem reservatório domiciliar de água para suprir a demanda doméstica quando houver racionamento. A prática de armazenamento de água em tambores e baldes para garantir o mínimo necessário para as atividades básicas, consiste na única solução para o enfrentamento da crise hídrica.

A pergunta que necessita ser respondida é: além dos impactos econômicos e políticos decorrentes da crise hídrica, qual é o impacto na Saúde Pública? As pessoas adoecem mais durante a crise? Em caso positivo, de quais patologias elas mais padecem? As autoridades sanitárias estão atentas para verificar se há alguma alteração no perfil epidemiológico da população afetada pela crise hídrica?

Na busca de respostas para estas perguntas é importante lembrar quais as doenças que podem acometer uma população que tem acesso restrito à agua em quantidade e qualidade necessária para fins de dessedentação, higiene e preparo de alimentos.


Podemos classificar as doenças relacionadas à água em 6 categorias para fins didáticos:

1 – doenças microbianas de origem hídrica - consumo de água contendo patógenos (contaminação da água por fezes humanas ou animais). Ex: diarréias bacterianas: cólera, febre tifóide; febre paratifoide, diarréias não-bacterianas, hepatite A, poliomielite, giardíase, disenteria amebiana, ascaridíase (...)

2- Intoxicações (aguda e crônica) por produtos químicos de origem hídrica - consumo de água contendo produtos químicos perigosos (tóxicos). Ex: agravos de caráter agudo: diarréia, vômito, náuseas, agravos de caráter crônico: neoplasias.


3- Doenças relacionadas à higiene - incidência, prevalência ou gravidade podem ser reduzidas pelo uso de água potável (segura) na higiene pessoal ou doméstica. Ex: tracoma, tifo, pediculose, escabiose.


4 - Doenças relacionadas com o contato primário com a água - contato da pele e/ou mucosas com água contaminada com microrganismos patogênicos ou produtos químicos perigosos. Ex: esquistossomose, leptospirose.


5 - Doenças relacionadas a vetores - vetores cujo ciclo de vida ocorre, todo ou em parte, no ambiente aquático ou em suas adjacências. Ex: dengue, febre amarela, malária.


6 - Doenças relacionadas a aerossóis - inalação de aerossóis contendo microrganismos patogênicos. Ex: legionelose

Ao tratarmos da possibilidade de aumento de doenças relacionadas à água decorrente da escassez hídrica, devemos pensar especialmente nas:


· doenças microbianas de origem hídrica

· Doenças relacionadas à higiene

· Doenças relacionadas a vetores


Como relatado em ensaio escrito neste Blog (Indicadores de saúde: podemos utiliza-los para definir prioridades e desempenho do saneamento básico?), no Brasil, o Sistema Único de Saúde – SUS, trabalha com uma série de informações relacionadas a doenças que acometem a população brasileira. Estes dados encontram-se numa base denominada DATASUS e que compreende: SIH/SUS (contém dados das internações hospitalares da rede SUS), SIA/SUS (contém os atendimentos ambulatoriais realizados na rede do SUS) e SINAN (contém os dados de doenças de notificação compulsória).


Além disso a Monitorização das Diarreias Agudas (MDDA) constituem-se em outra ferramenta importante para avaliar possíveis agravos à saúde da população, tendo em vista a forte relação entre diarreias e doenças de veiculação e de origem hídrica.


Considerando as limitações dos bancos de dados existentes no SUS relatados no ensaio mencionado anteriormente, verifica-se que a melhor fonte de informação para pesquisarmos se houve alteração no perfil epidemiológico de algumas doenças relacionadas à agua durante o período de escassez hídrica, seria o SINAN, visto ser de notificação compulsória.


O SINAN nos fornece dados sobre doenças e agravos de notificação compulsória, sendo que as doenças relacionadas à transmissão e origem hídrica são: cólera, dengue, febre amarela, febre de chikungunya, febre tifoide, hepatites virais (entre eles a hepatite A), leishmaniose (visceral e tegumentar americana), leptospirose, malária e zika vírus.


De todas as doenças acima citadas, a única que não relaciona-se à Crise hídrica é a leptospirose, pois é transmitida pela urina de rato, normalmente em situações de pessoas em contato da pele com água contaminada em enchentes.


Ao verificarmos os dados das demais doenças no SINAN, constata-se que apenas existe informação sobre dengue e hepatites virais, não havendo casos registrados de cólera, febre amarela, febre de chikungunya, febre tifoide, leishmaniose (visceral e tegumentar americana), malária e zika vírus nos municípios da bacia hidrográfica do Alto Tietê nos período de 2013 a 2016, que escolhemos para verificar a ocorrência de possíveis agravos à saúde pública decorrente da crise hídrica ocorrida nos anos de 2014-2015. Para efeito de comparação selecionamos os anos pré (2013) e pós crise (2016).


Casos confirmados de dengue nos município que integram a bacia do Alto Tietê nos anos de 2013 a 2016 – Fonte: SINAN/Datasus/Ministério da Saúde




Como mencionado, o SINAN registra os casos confirmados de Hepatites Virais, não identificando o tipo. Portanto não é possível saber dos casos registrados quais são os de transmissão hídrica, ou seja, a hepatite A. De qualquer forma apresentamos a seguir a tabela com os casos de hepatites virais, para verificar um possível aumento de casos nos anos de 2014 e 2015.


Casos confirmados de hepatites virais nos município que integram a bacia do Alto Tietê nos anos de 2013 a 2016 – Fonte: SINAN/Datasus/Ministério da Saúde



Dos dados levantados, verifica-se que ocorreu um aumento significativo dos casos de dengue nos anos de 2014 e 2015, período de maior escassez de água na bacia do Alto Tietê. Por ser uma doença transmitida por vetor que necessita de coleções hídricas para sua reprodução (Aedes aegypti), é possível que o aumento de casos decorre do maior número de mosquitos presentes em um ambiente favorável à sua reprodução, isto é, na medida em que o abastecimento de água sofre interrupções, muitas famílias passam a armazenar água em vasilhames para suprir suas necessidades básicas.

Da análise dos dados de hepatites virais, não se verifica aumento de casos nos anos de 2014 e 2015. Vale lembrar que a ocorrência de hepatite do tipo A, normalmente ocorre em ambientes fechados (escolas e creches, por exemplo). Agravos à saúde decorrente de contaminação de rede de distribuição de água resulta em casos de diarreia nas populações abastecidas pela água contaminada, sendo que dificilmente investiga-se o agente etiológico causador das diarreias.


Conclusão: considerando o sistema de informações atualmente existente no SUS – Sistema Único de Saúde, o melhor indicador para acompanhamento das consequências para a Saúde Pública decorrente de uma crise hídrica na bacia do Alto Tietê, ainda são os registros de casos de dengue. Entretanto estudos mais aprofundados devem ser efetuados junto às autoridades sanitárias para avaliar a ocorrência de dengue em outros anos em que não ocorreu desabastecimento de água, devido a outros fatores relacionados à disseminação do Aedes aegypti, bem como a vulnerabilidade da população à transmissão dos quatro tipos de sorotipo da dengue.


O acompanhamento das ocorrências de hepatite do tipo A pelo SINAN não nos permite chegar a nenhuma conclusão, pois aquele sistema de informação não faz distinção entre as hepatites de transmissão oral-fecal e as transmitidas por outras vias.


Propostas de aprimoramento do sistema de vigilância epidemiológica para situações de desabastecimento de água potável

1 – efetuar busca ativa dos casos de dengue em setores do município onde ocorre desabastecimento com maior frequência, especialmente nas camadas sociais mais vulneráveis, que muitas vezes não possuem reservatório domiciliar de água potável;

2 – ficar atento para casos de hepatite A (desagregando-a das demais hepatites virais) e outras doenças de veiculação hídrica, especialmente em áreas de ocorrência de pressão negativa na rede de distribuição;

3 – Implantar unidades sentinelas nos pronto socorros do município para detecção de diarréias agudas, de acordo com o programa de Monitorização de diarreias Agudas do Ministério da Saúde – MDDA.

As crise hídricas deverão se tornar uma constante em nosso país, em função de diversos fatores como o desmatamento das florestas, gestão inadequada dos recursos hídricos, falta de planejamento e as mudanças climáticas em curso.

Cabe às autoridades sanitárias trabalhar de forma integrada com os responsáveis pela gestão de recursos hídricos e saneamento básico, na busca de indicadores que representem o impacto do desabastecimento de água potável na saúde pública, com vistas a fornecer ferramentas para planejar as ações de prevenção e controle de doenças e outros agravos à população.


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