ARISTIDES ALMEIDA ROCHA
. Biólogo, Professor Universitário na área de Meio Ambiente
. Ex-Superintendente de Impactos Ambientais da CETESB
. Ex-Diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP
. Professor Dr., MSc, Livre Docente, Titular e Emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP
. Ex Diretor do Centro de Apoio Á Pesquisa (CEAP) da FSP-USP
. Membro da Academia de Ciências do Estado de São Paulo;
. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo;
.Membro da Ordem Nacional dos Escritores (ONE)
.Membro do Clube de Escritores de Piracicaba
.Autor de mais de 200 trabalhos publicados em revistas técnicas e científicas e de livros;
.Consultor da OPS/OMS e do BID na área de Meio Ambiente e Poluição das Águas.
"A água é principio de todas as coisas"
Tales de Mileto
A ÁGUA UM BEM SAGRADO
Antigas civilizações, como sumérios e babilônios, consideravam a água como o mais valioso presente dos deuses. Os chineses falavam da ajuda que a água traz para milhares de pessoas, sem nada exigir. De fato, Goethe, assim como Tales de Mileto na antiguidade, mais modernamente, enfatizava que tudo nasceu da água, tudo é mantido pela água.
Na verdade, à água são atribuídos poderes sobrenaturais. Ao se folhear textos de livros sagrados de diversas civilizações é possível deparar com inúmeras citações associadas à religião e à ciência.
No batismo cerimônia destinada a livrar os fiéis cristãos do pecado original, a água está presente. Aos hindus o banho nas águas do rio Ganges é um ritual de purificação. Entre os indígenas da tribo Bambaras, no sétimo céu está o deus Faro, senhor do verbo e das águas, que lança a chuva purificadora e fecundante.
Embora na civilização moderna a água não seja o símbolo da purificação, esse precioso líquido, no entanto é o próprio elemento da purificação.
A primeira reflexão do ser humano sobre sua própria imagem ressalta o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, aconteceu ao mirar-se no espelho d'água.
A fábula de La Fontaine sobre o lobo e o cordeiro, uma das mais conhecidas, passa-se às margens de um límpido regato.
A mitologia das sociedades primitivas e o folclore de civilizações mais atuais apresentam diversas narrativas de Deus criador tomando como primeira providência o dar forma às águas e ao regime dos rios.
Na verdade a paisagem fica, sem dúvida, indelevelmente marcada pela presença de qualquer coleção d'água, uma praia, um lago, um rio, um riacho, uma fonte e até mesmo um chafariz.
Ainda que nossos rios, no mais das vezes sirvam de veículos transportadores de dejetos, paradoxalmente prestamos reverência aos rios. Basta lembrar que temos os estados do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Aliás, os habitantes do estado do Rio são fluminenses e os naturais da cidade do Rio de Janeiro, além de fluminenses, cariocas por terem nascido às margens do rio de mesmo nome, hoje canalizado e poluído.
Os rios servem também à metáfora e ao simbolismo do religioso, do pensador e do poeta. Zaratustra comparava o ser humano a um rio poluído que ao lançar-se ao oceano eliminava toda a sujeira. Dante apresenta o rio Aqueronte de águas repugnantes e asquerosas à entrada do Inferno; no purgatório, o rio Letes, o do esquecimento e, o rio Eunoe com águas calmas recordando o bem cumprido neste mundo.
Hermann Hess em “Sidarta” confere humanidade aos rios: “O rio cantava com voz plangente. Cantava saudades. Angustiado, dirigia-se à sua foz, e sua voz soava melancólica”.
Olavo Bilac, o grande poeta pátrio em “Os Rios” assim verseja:
..."Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança,
Rios no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,
Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança
De todos os que morrem de saudade...
Desejais regressar."
Já o filósofo francês Remy de Gourmont refere-se aos rios como um ser humano:
"O rio é uma pessoa. Tem nome. Este nome é muito velho, porque o rio, ainda que sempre moço, é muito antigo. Existia antes dos homens e antes das aves. Desde que os homens nasceram, amaram os rios, e tão logo souberam falar, lhes deram nomes".
No âmbito da ciência há pesquisadores que tem trabalhado a água tentando atribuir-lhe verdadeiro sentimento, apresentando fotografias de cristais de aparência diferente se a água é poluída ou límpida. Mas o mais impressionante são as experiências do cientista japonês Massaru Emoto sobre “a mensagem da água”. A água é aquecida a determinadas temperaturas e as moléculas são fotografadas sendo submetidas a diferentes sentimentos humanos, pensamentos e músicas. E cada cristal apresentava formas diferentes, cristalinos, turvos e outros de acordo com o pensamento ou música associados.
Ainda que muitos membros da comunidade científica questionem essas pesquisas e sua credibilidade não se deve esquecer o poder da “energia do pensamento”. E tendo em conta que o corpo humano é constituído por mais de 60% água, quem somos nós para contradizer com tanta ênfase o pesquisador japonês.
O que posso testemunhar é que como biólogo trabalhando, nos mais variados ambientes aquáticos e nas mais diversas condições sanitárias, realmente ao observar amostras ao microscópio sempre me pareceu óbvia e gritante as diferenças nas gotas d´água examinadas. E eu confesso nem estava pensando nas mensagens da água.
ÁGUA ELEMENTO VITAL
A importância da água para a vida é tema tão ancestral, quanto o aparecimento do ser humano na Terra. No Gênesis encontra-se a seguinte citação: “no mesmo dia, todas as fontes irromperam das grandes profundezas e as janelas do céu foram abertas [...] prevalecendo às águas sobre a Terra”.
Realmente a superfície terrestre é em sua maior parte coberta pelas águas, elemento vital a todos os seres vivos, um recurso natural renovável através do ciclo hidrológico, que ocorre no planeta, simultaneamente nos três estados físicos: líquido, sólido e gasoso.
Outra ponderação ao se fazer referência ao vocábulo água, quimicamente H2O, isto é duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, é que em geral tem-se em mente tão somente o elemento natural. E praticamente não se leva em conta que ela possibilita a existência da vida nos ambientes terrestre e aquático e tampouco se pensa nos usos ou aproveitamentos diversos desse precioso líquido.
De fato o ser humano desde tempos imemoriais tem utilizado a água para inúmeros fins: Manutenção de suas funções vitais; higiene pessoal; preparação de alimentos; recreação; pesca; dessedentação de animais; irrigação na agricultura; navegação e transporte de pessoas e materiais; abastecimento domiciliar e industrial; produção de energia; diluição de esgotos sanitários e despejos industriais.
Vamos lembrar também que esse elemento natural é primordial ao ser humano, correspondendo de 60% a 70% do peso de uma pessoa, em média. Um corpo de 90 kg consome em média por dia, cerca de três litros de água, dos quais 53% são eliminados pela urina, 42% evaporados da pele e pulmões e 5% perdidos nas fezes.
Essas são razões pelas quais desde tempos imemoriais a água ditou o crescimento e o florescer de civilizações, que sempre procuraram estabelecer-se nas proximidades dos rios. Assim ocorreu às margens dos rios Tigres, Eufrates na Mesopotâmia e em tantas outras cidades nos vários continentes.
Outra consideração é de que, embora a maior parte da superfície do globo seja coberta pelas águas, 97,5% corresponde aos mares e oceanos de água salgada e apenas 2,5% de águas doces nos rios e lagos. Para nós brasileiros é auspicioso registrar que 12% de toda a água doce do mundo encontram-se no Brasil. Porém, nem tudo são flores, pois infelizmente a distribuição desse precioso recurso natural não é equitativa, havendo regiões de farta disponibilidade e outras de escassez considerável.
Por outro lado o ser humano em todo o mundo, não tem parcimônia na utilização das águas, estimando-se que 70% sejam destinados à agricultura; 20% ao uso industrial e apenas 10% para o consumo humano. E o que é pior a Organização Mundial da Saúde assinala que neste século, mais de 80% das doenças em todo o Globo são devidas à utilização de águas poluídas.
O Homo sapiens, melhor dizendo o Homo tecnologicus, insiste no uso e manejo irracional do recurso natural água. Observe-se, por exemplo, a região nordeste do Brasil que padece com a crônica escassez de água. Ao invés de se aproveitar a água dos ricos lençóis subterrâneos, ou do aquífero, se insiste na prática da reversão de rios, caríssima e de sérios efeitos negativos à ecologia, sempre em nome do progresso e desenvolvimento. Esta aí o Velho Chico, o Rio São Francisco, da integração nacional, com inúmeras obras paralisadas, projeto de discutível eficácia, não resistindo a qualquer análise de custo benefício. Alega-se que o aquífero na região é muito profundo, esquecendo-se os arautos da megalomania que o petróleo é explorado a mais de oito quilômetros de profundidade no mar.
Como em 1999 enfatizava o notável geólogo nordestino, Aldo da Cunha Rebouças, professor da Universidade de São Paulo, o ideal na região seria a perfuração de poços, todavia isso não vai acontecer enquanto houver: “a ausência de um padrão cultural que agregue ética e melhor eficiência de desempenho político dos governos, da sociedade organizada, das ações públicas e privadas, promotoras do desenvolvimento econômico em geral e da sua água doce em particular”.
A Organização Mundial da Saúde fundada em 1945, por proposição do brasileiro Dr. Geraldo de Paula Souza, várias vezes, manifestou preocupação com a utilização e qualidade sanitária das águas. Embora a década da Água tenha sido estabelecida em 2005/2015, já nos anos 1960 e 1970 havia sensível preocupação com os Recursos Hídricos. Lembro que nesse período, quando biólogo da CETESB, a década dos anos 1960 foi referida como a do "Abastecimento de Água" e a de 1970, assim como em 2005/2015, a "Década da Água". Já o dia 22 de Março foi definido como Dia Mundial da Água, no encontro da Rio 92.
A ÁGUA E OS USOS CONTROLADOS
Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a “ECO 92”, na cidade do Rio de Janeiro, 179 países assinaram a Agenda 21. O documento com quarenta capítulos versando sobre o Meio Ambiente permeia todo ele, aspectos relacionados à água. Há a partir de então sensível alteração conceitual no processo de planejamento e gestão dos recursos hídricos. Particularmente o Capítulo 4, referente ao eficiente uso dos recursos hídricos, assinala que a água doce é um recurso finito e indispensável à sobrevivência das espécies, incluindo o Homo sapiens.
Vários outros encontros internacionais, como os da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1996; o Relatório sobre Recursos de Água Doce do Mundo, 1997; as ações do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), 2001 e as edições que foram se sucedendo ao longo do século XXI, reafirmam o novo paradigma para o gerenciamento dos recursos hídricos. Fundamentalmente todos reconhecem ser a água essencial à vida e que esse recurso natural é finito, vulnerável devendo ser protegido, controlado e utilizado com parcimônia; quando possível após os usos deve-se praticar o reuso.
Penso, portanto, que o próprio termo “recursos hídricos” leva conotação de que a água é um bem econômico sempre passível de ser utilizado quando e quanto o ser humano assim o entender. Mas o importante é ressaltar que a água, bem econômico ou não, constitui, como enfatizado, elemento essencial à sobrevivência dos seres vivos. Nessas condições não basta, às populações humanas apenas dispor de água em quantidade, mas sim que esta apresente um padrão mínimo de qualidade que a possa tornar disponível ao consumo e de modo sanitariamente seguro.
Entretanto a inexorável evolução do ser humano, e a criação de tecnologia em princípio destinada a gerar conforto e bem estar, processo nem sempre acompanhado de medidas restritivas visando proteger o meio ambiente e os recursos por ele proporcionados, paradoxalmente, tem de maneira brusca ou gradativa, comprometido inúmeros ecossistemas, muitos irremediavelmente.
Por essa razão as chamadas águas interiores, rios, lagos represas e mesmo as águas subterrâneas e subsuperficiais, lençóis d´água e aquíferos, verdadeiros reservatórios, apresentam-se em várias regiões de continentes diversos, contaminados e poluídos.
Inúmeros rios de importantes bacias hidrográficas e regiões estuarinas recebem in natura os dejetos das cidades e/ou lançamentos de despejos industriais, alterando a biota, comprometendo a biodiversidade, conferindo toxidez, restringindo o uso para abastecimento ou onerando o tratamento.
Historicamente a poluição dos recursos hídricos na dimensão e escala que atualmente ocorre em vários países do globo, inclusive o Brasil, teve início na Inglaterra durante a revolução industrial na segunda metade dos anos 1700. Desde essa época se estabeleceu a prática até hoje corrente, de eleger os corpos de água como receptores e veículos transportadores de esgotos sanitários e industriais.
Talvez não se possa questionar a importância da tecnologia como atividade essencial destinada a gerar conforto e bem estar da humanidade, e às vezes da própria sobrevivência. Modernamente o ser humano é capaz de suprir, artificial ou artificiosamente, suas limitações e deficiências biológicas, adaptando-se às mais diversas circunstâncias e variações do meio.
Contudo é preciso assinalar que utilizar a instrução para inventar, criar e implantar projetos tecnológicos deveria obedecer a um planejamento atendendo certos requisitos principais:
-introduzir inovações somente na medida em que fossem necessárias à contínua adaptação do homem à evolução do meio ambiente;
-analisar qualquer inovação em suas mínimas consequências permitindo o desenvolvimento do substrato tecnológico, mas impedindo ou neutralizando resultados secundários nocivos ao meio ambiente;
-avaliar a implantação dos processos tecnológicos com o máximo de escrúpulo ecológico.
Contudo, em nosso país, após anos e anos de negligência, à medida que as águas foram sendo conspurcadas, apenas algumas esparsas vozes de vários segmentos da sociedade, de quando em quando se faziam ouvir, alertando sobre os impactos que iam se sucedendo. Assim só muito lentamente a população e, sobretudo a classe política dirigente foi sendo sensibilizada induzindo de início a incipientes medidas de proteção.
O setor produtivo acompanhou esse movimento, nem tanto pela preocupação ambiental, mas sim pelos prejuízos econômicos sofridos afetando seus próprios empreendimentos, devido à falta de água para a produção; deterioração do produto manufaturado em face da poluição do ar; contaminação do solo gerando passivo ambiental; escassez de energia e outros óbices.
Cidades que ao final do século XIX e início do século XX, freneticamente se
industrializaram, como São Paulo, transformando-se já na metade do século passado na terceira metrópole mundial, até o presente pagam pesado “tributo ambiental” pela falta de planejamento irreversivelmente afetando a cidade.
E é paradoxal saber que o estado de São Paulo mantenha atualmente a liderança nos sistemas de gestão e controle ambiental e dos recursos hídricos, exatamente em função dos inúmeros problemas acumulados devido aos desvarios com que a qualquer custo perseguiu o progresso.
Em nível nacional a experiência brasileira em relação à gestão dos recursos hídricos apresenta ainda atualmente grandes dificuldades tendo em vista abranger regiões de características bastante díspares, conformando um universo territorial de 8.511.965 km2 de superfície, incluindo 55.457 km2 de águas interiores.
Evidencia-se, que na verdade o que preocupa no Brasil não é propriamente a falta ou escassez de água, quando se considera a não uniforme distribuição do recurso hídrico. Há experiência acumulada e disponibilidade atual de métodos e pessoal qualificado para o manejo dos recursos hídricos. Alia-se a essas condições o predisposto na Carta Magna do país, a Constituição de 1988, artigo 20, inciso III e artigo 26, inciso I. Esses artigos modificaram a definição do antigo Código de Águas (Decreto nº 24.63, de 10.7.1934 que conferia competência para administração dos recursos hídricos ao Ministério da Agricultura). As novas disposições atribuem as águas aos domínios da União e dos Estados, permitindo que o país possa hoje adotar concretas medidas na gestão das águas superficiais e subterrâneas.
A verdade é que possuímos um arcabouço legal e também razoável e bem estruturado sistema de gestão das águas embasado na Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH); no Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh); na Agência Nacional de Águas (ANA), além de vários outros órgãos governamentais, em níveis estaduais e municipais.
E nesse universo não se pode esquecer a atuação da própria sociedade civil através das Organizações não Governamentais (ONGs) que exercem excelente papel fiscalizador.
Todavia, infelizmente pecamos muitas vezes por não cumprir ao pé da letra as predisposições inseridas em lei. Porém levando em conta as considerações apresentadas e adotadas as medidas preconizadas para uma gestão adequada, crê-se firmemente que só assim se estará preservando o recurso natural água.
A propósito é pertinente lembrar São Francisco de Assis, agradecendo ao Criador: “Seja louvado, ó Deus, pela água, tão necessária, versátil, preciosa e frágil”.
Parabéns Professor Aristides, pelas informações históricas e a forma simples e didática descrita neste artigo.
Em seu artigo, professor Aristides nos concede uma verdadeira aula magna sobre a maneira que diversas civilizações, no tempo e espaço, se relacionavam com a água. Considerada Sagrada pelos povos antigos ( e ainda hoje pelos povos indígenas) o homem moderno, do alto de sua soberba, considera a água como um mero recurso a ser explorado e maltratado para atender às suas necessidades. Nossa irmã água, como dizia Francisco de Assis, é na verdade um PATRIMÔNIO e como tal deve ser cuidada e respeitada para que todos os seres viventes deste planeta, possam dela usufruir para seu bem estar e sobrevivência. Obrigada professor Aristides, por nos lembrar a importância da água em nossas vidas e quanto somos ingratos com ela…