Matheus Nicolino Peixoto Henares – Biólogo, doutor em Aquicultura de Águas Continentais pelo Centro de Aquicultura da UNESP. Coordenador da Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão do Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos - UNIFEB e professor de Ecologia e Manejo e Gestão de Bacias Hidrográficas. Atualmente, também ocupa a função de vice-presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Pardo-Grande (CBH-BPG)
Denise Maria Elisabeth Formaggia
Engenheira civil e sanitarista
Membro Benemérito do Comitê de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte
Em um momento em que novamente a crise hídrica volta a assombrar aqueles que gerenciam os serviços de abastecimento de água e o setor elétrico, voltamos nosso olhar ao sistema de gestão de recursos hídricos em nosso país.
O presente texto tem por objetivo principal abordar aspectos relativos à gestão das águas em nosso país, abrangendo conceituação, situação dos recursos hídricos no Brasil, os modelos de gestão vigentes, dificuldades enfrentadas pelo atual sistema de gestão e propostas para seu aprimoramento.
Como veremos adiante, a preocupação com a questão hídrica sempre foi objeto de preocupação dos governantes desde o tempo do Brasil Colônia. Recentemente alguns termos têm ganhado destaque entre a comunidade técnica e que ao conquistar espaço na mídia causam uma certa confusão no que tange ao seu real significado. São eles:
● PLANO DE SEGURANÇA HÍDRICA
● PLANO DE RECURSOS HÍDRICOS
● PLANO DE SEGURANÇA DA ÁGUA
Entre aqueles que não atuam na área, a pergunta que naturalmente vem à cabeça é: “Mas não são a mesma coisa?” É o que veremos adiante, mas antes vamos fazer uma viagem no tempo.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Para entendermos o presente e planejarmos o futuro, é necessário conhecermos o passado.
Atualmente o tema Recursos Hídricos é alvo de muito interesse tanto no meio técnico como pelo público em geral, especialmente quando se depara com falta de água nas torneiras.
Vamos começar nosso passeio pela História, tentando entender como os recursos hídricos eram tratados à época do Brasil Colônia.
Portugal ditava as regras de convivência em terras brasileiras de acordo com as chamadas “Ordenações”, ou seja, um conjunto de normas a serem obedecidas pela metrópole (Portugal) e suas colônias.
As Ordenações Afonsinas (Rei Afonso reinou em Portugal de 1438 a 1481) foi o primeiro código europeu editado em 1446 baseado no Direito Romano Canônico. Este Código estabeleceu princípios ambientais e sociais destinados à atividade agrícola, pois na época a população portuguesa passava por períodos de fome, o que obrigou inclusive o rei a proibir o envio de trigo ao Brasil.
Posteriormente as Ordenações Manuelinas de 1521 (Dom Manual I reinou de 1495 a 1521)
Após a morte do Rei Dom Sebastião em guerras no Marrocos, Portugal esteve sob o domínio espanhol no período de 1580 a 1640, conhecida como a União Ibérica. Neste período predominaram as Ordenações Filipinas (rei Filipe II da Espanha e I de Portugal bem como seu filho, Filipe III da Espanha e II de Portugal).
As Ordenações Filipinas previam programas de obras públicas para construção de calçadas, pontes, chafarizes e poços e inseriram o conceito de poluição na medida em que proibia qualquer pessoa de jogar materiais que pudessem matar os peixes ou que sujasse os rios e lagoas.
Essas orientações foram mantidas no Código Civil e Criminal do Império (1824) e revogados com o advento do Código da República em 1916.
Além disso, durante o domínio Holandês a partir de 1642, fora proibido o lançamento de bagaço de cana nos rios e açudes com o objetivo de proteger as populações pobres que se alimentavam dos peixes de água doce.
O Código Penal Brasileiro publicado em 11/10/1890 manteve as Ordenações Filipinas, mas o Código Civil de 1916 as revoga, dando início a pulverização de regras por meio de diversos instrumentos legais.
No final do século XIX e início do século XX aumenta no Brasil a demanda por água, especialmente devido à agricultura e à necessidade de geração de energia elétrica, tendo em vista ser a água a única forma de gerar energia, na ausência de petróleo e carvão.
Em 1904 o jurista Alfredo de Vilhena Valadão, elabora e publica um estudo jurídico intitulado “Águas Públicas e Particulares”. Em função desse estudo ele foi convidado para elaborar um texto para uma legislação brasileira sobre as águas. Em 1907 este texto foi enviado ao Congresso Nacional tendo tramitado por quase 30 anos.
Finalmente em 1934 foi promulgado o Decreto federal 24.643. denominado “Código de Água” que vigorou até 1997. Na época era o Código mais avançado do mundo pois previa princípios hoje conhecido como “poluidor-pagador” e estabelecia a autorização pelo uso da água.
A demora na aprovação pelo Congresso do Código das Águas deveu-se ao fato de ser considerado inconstitucional. Ele só pode ser aprovado após o governo nacionalizar as águas e o sub-solo.
Em linha gerais, o Código de Águas previa o uso prioritário para geração de energia elétrica, mas considerava o uso prioritário para consumo humano e dessedentação de animais para o semiárido nordestino, tendo em vista a situação. Vazões menores do que 5m³/dia não necessitaria de autorização, mas derivações de águas públicas exigia outorga por parte do governo. Previa também a responsabilidade financeira e penal para as atividades de contaminação dos mananciais, num prelúdio do princípio do “poluidor-pagador”.
GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL
Antes de iniciarmos este item, é importante fazer uma distinção entre GOVERNANÇA e GESTÃO, termos muitas vezes confundidos.
Governança é a capacidade de planejar, formular, programar políticas e cumprir funções.
A gestão tem a função de executar os planos aprovados de forma a entregar os resultados definidos. Verificamos assim que a gestão tem a função executiva
São funções da governança:
a) definir o direcionamento estratégico; b) supervisionar a gestão; c) envolver as partes interessadas; d) gerenciar riscos estratégicos; e) gerenciar conflitos internos; f ) auditar e avaliar o sistema de gestão e controle; e g) promover a accountability (prestação de contas e responsabilidade) e a transparência.
São funções da gestão:
a) implementar programas; b) garantir a conformidade com as regulamentações; c) revisar e reportar o progresso de ações; d) garantir a eficiência administrativa; e) manter a comunicação com as partes interessadas; e f ) avaliar o desempenho e aprender.
PLANOS DE GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS
A gestão de Recursos Hídricos no Brasil, se dá por meio de ações previstas em Planos elaborados a partir de diagnósticos da situação hídrica, levando-se em consideração a quantidade e qualidade para os mais diversos fins para uso humano e para a sobrevivência de espécies que dela dependem.
No Brasil temos basicamente 3 modalidades de Planos de Gestão de Recursos Hídricos:
● Plano de Recursos Hídricos
● Plano de Segurança da Água
● Plano de Segurança Hídrica
Vejamos resumidamente o que cada um desses Planos se refere e seus objetivos.
1 – Plano de Recursos Hídricos
Os princípios básicos da legislação brasileira de águas constam da Carta de Salvador, de 1987. Uso múltiplo enfatiza o uso integrado, que implica rateio de custos e institucionalização de decisões colegiadas. Descentralização visa garantir adequação das decisões às diversidades e peculiaridades regionais. Participação da comunidade garante ações pertinentes, ágeis e contínuas. Isto desemboca na necessidade de um sistema de gerenciamento nacional integrando estados e municípios.
Em 1989, a carta de Foz de Iguaçu acrescentou: 1) a importância do gerenciamento integrado: aspectos quantitativos e qualitativos, considerando a fase aérea, superficial e subterrânea do ciclo hidrológico; 2) a bacia hidrográfica como unidade básica para o gerenciamento; 3) a água é vista como recurso limitado, com custos crescentes de obtenção e, por isto, um bem econômico. Desta forma, a cobrança pelo uso da água é vista como fundamental para racionalização do seu consumo e gerar recursos para seu gerenciamento. O lançamento de efluentes define uma forma alternativa de uso, que é a de promover a diluição, transporte e assimilação. Por competir com outros usos, também deve ser cobrado. 4) A outorga é um instrumento fundamental de gerenciamento para disciplinar os usos múltiplos e exige órgão não setorial nas diferentes esferas de governo para atuar nas águas sob seu domínio (Barth, 2002). A Política Nacional de Recursos Hídricos, estabelecida pela Lei 9.433, de 08/01/1997, assume todos esses princípios além de manter o uso prioritário para consumo humano e dessedentação de animais, que já estava presente na legislação anterior
O Plano de Recursos Hídricos se constitui em um dos instrumentos preconizados para a gestão dos recursos hídricos conforme determina a Política Nacional de Recursos Hídricos (lei nº 9.433/1997), em conjunto com o enquadramento dos corpos de água em classes segundo os usos preponderantes da água; a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; a cobrança pelo uso de recursos hídricos; a compensação a municípios e o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.
2 - Plano de Segurança da Água
O Plano de Segurança da Água é um documento que identifica e prioriza riscos potenciais que podem ser verificados em um sistema de abastecimento, incluindo todas as etapas desde o manancial até à torneira do consumidor, estabelecendo medidas de controle para os reduzir ou eliminar e estabelecer processos para verificar a eficiência da gestão dos sistemas de controle e a qualidade da água produzida. (Guidelines for Drinking-Water Quality - GDWQ da Organização Mundial da Saúde – OMS)
3 – Plano de Segurança Hídrica
O Brasil tem como principal agente de segurança hídrica a Agência Nacional de Águas (ANA). A agência se utiliza do Plano Nacional de Recursos Hídricos para sintetizar a situação atual e a necessidade de ações futuras relativas aos corpos hídricos.
Constam neste documento informações sobre gestão, projetos, obras e investimentos prioritários que irão direcionar as políticas públicas.
Os planos de segurança hídrica no país possuem níveis federais, estaduais e municipais. A junção desses níveis forma o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) sob deliberação da ANA.
DIFICULDADES ENFRENTADAS NA GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS
Nível Institucional:
● Falta de integração institucional;
● Falta de Continuidade dos planos e metas estabelecidas nos planos de gestão de recursos hídricos
● Dispersão de recursos financeiros na elaboração e implantação de projetos que realmente impactam a qualidade dos recursos hídricos;
Nível Tecnológico:
● Dificuldades em atender os quesitos necessários para classificar os corpos d’água estabelecidos pela CONAMA 357/2005, que define as classes
● Necessidade de adoção de tecnologias inovadoras
Nível social:
● Garantir a conscientização da sociedade;
● Garantir a participação da sociedade de forma qualificada;
● Necessidade de desenvolver mecanismos de informação e comunicação de massa para a população
PROPOSTAS PARA MINIMIZAR ALGUNS PROBLEMAS APONTADOS
NÍVEL INSTITUCIONAL:
1) Falta de integração institucional
A gestão hídrica é tratada por diversos órgãos de governo nos três níveis administrativos: federal, estadual e municipal.
Os Planos de Bacias elaborados pelos Comitês de Bacias dos diversos estados da União, os Planos Estaduais de Bacia, bem como o Plano Nacional de Recursos Hídricos, somados mais recentemente ao Plano de Segurança Hídrica elaborado pela União, apresentam objetivos, ações e metas para atender ao seu objetivo, que em suma é garantir água em quantidade e qualidade para os diversos usos necessários à atividade humana e preservação dos seres que dela dependem.
As atividades previstas nos planos de gestão abrangem desde projetos e obras, o aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão (outorga, cobrança pelo uso da água, sistemas de informação, monitoramento, fiscalização), a educação ambiental e capacitação técnica.
As metas e atividades previstas nos diversos planos devem ser parte integrante das políticas setoriais dos órgãos e instituições envolvidas com a gestão hídrica, no nível estadual ou municipal, tais como: as empresas de saneamento básico (responsáveis pelo abastecimento de água e esgotamento sanitário dos municípios), os órgãos de controle ambiental (responsáveis pela fiscalização e monitoramentos dos corpos d’água), os órgãos responsáveis pela outorga do uso da água e pelos próprios municípios que compõem a bacia hidrográfica de que trata o Plano de Gestão. No entanto, o que se verifica, via de regra, é um distanciamento entre o que foi estabelecido nos planos e as diversas políticas setoriais, ou seja, o que foi acordado entre os representantes dos órgãos, instituições e municípios que compõem o Comitê de Bacias não é adotado nas diversas políticas setoriais
O resultado prático é que:
● As empresas de saneamento não preveem recursos para atender por exemplo, as metas de coleta e tratamento de esgotos que diminuirá a poluição dos cursos d’água da bacia;
● Os órgãos responsáveis pelo monitoramento e fiscalização dos mananciais da bacia, não conseguem atender as metas estabelecidas no plano para verificação de sua qualidade ou coibir fatores que venham a influenciar negativamente na qualidade da água;
● Os órgãos responsáveis pela autorização do uso da água não conseguem garantir que todos tenham direito à água de forma sustentável;
● Os municípios que exercem, entre outras funções, o regramento e fiscalização do uso do solo urbano, caso não adotem os planos de gestão do qual participaram, tem dificuldades em garantir água para todos dependendo da política de expansão urbana adotada pelo município. Sem mencionar o Plano Municipal de Saneamento que estabelece metas de universalização para o abastecimento de água e coleta/tratamento de esgotos.
Como garantir que o planejamento de gestão de recursos hídricos que ocorre a nível horizontal seja também adotado no nível vertical representa um dos maiores desafios da administração pública e não é exclusivo do setor de recursos hídricos. Dois aspectos fundamentais devem ser levados em conta quando tratamos desta questão e que podem ser resumidos nas seguintes palavras: PRIORIDADE e DISPONIBILIDADE FINANCEIRA.
A prioridade é que desencadeará a vontade política de desenvolver esforços para que os Planos de Gestão de recursos hídricos saiam do papel e seja viabilizado materialmente.
A disponibilidade financeira dependerá obviamente da capacidade dos governos (federal, estadual e municipal) em dispender recursos financeiros para atender as ações propostas nos planos de gestão. Entretanto, a disponibilidade financeira também depende do grau de prioridade que os governos dão à questão hídrica. Exemplo disso foram as ações desenvolvidas durante as recentes crises hídricas vivenciadas na região sudeste.
Em uma sociedade democrática, algumas propostas para garantir que governos priorizem a questão hídrica em todos os seus aspectos podem ser adotadas, tais como:
● A pressão da sociedade, por meio de seus representantes (nas câmaras de vereadores, assembleias legislativas e congresso nacional) e de Organizações Não Governamentais;
● A pressão dos parlamentares dependerá da pressão popular, o que por sua vez implica na consciência da população em geral sobre a importância de zelarmos pelos recursos hídricos, do qual depende a manutenção e desenvolvimento das sociedades humanas. A instrução fornecida pelo ambiente escolar é vital para a criação dessa conscientização desde os primeiros anos de vida da criança.
● A utilização dos meios de comunicação para abordar o tema por meio de reportagens e entrevistas, visando atingir o público em geral e os formadores de opinião. Vale lembrar a campanha da rádio Eldorado que desencadeou uma campanha em prol do rio Tietê e que resultou no projeto de despoluição do rio;
● Transparência dos órgãos públicos com relação ao orçamento, visando a identificação dos recursos destinados à gestão dos recursos hídricos e sua destinação considerando os planos de gestão nos três níveis de governo;
● Acompanhamento da execução orçamentária para avaliar se os recursos financeiros destinados às ações de preservação, recuperação e manutenção dos recursos hídricos, bem como as obras destinadas ao controle de inundações, reservação e mitigação dos efeitos da seca estão sendo utilizados;
● A pressão popular por meio das redes sociais também podem ser efetivas, haja vista as inúmeras campanhas desenvolvidas nas redes em prol dos mais variados temas e que muitas vezes resultam em ações concretas por parte dos poderes executivos e legislativos.
2) Falta de Continuidade dos planos e metas estabelecidas nos planos de gestão de recursos hídricos
A falta de continuidade das ações definidas nos Planos de Gestão (qualquer que seja ele) infelizmente não foge à regra de uma das características das políticas públicas de nosso país. Falta de recursos financeiros, orçamentos engessados, mudança de governos (estadual e municipal) em função do processo eleitoral, mudança nas prioridades da administração pública, se constituem em fatores que estão na origem deste problema.
A questão hídrica só ganha relevância quando da ocorrência de fatores emergenciais como eventos extremos (secas ou inundações) que afetam a vida de milhares de pessoas (abastecimento de água para consumo humano) ou impactam negativamente a economia (agricultura, pecuária, indústria).
Eventos adversos como a recente pandemia do Covid-19 alteram completamente o quadro econômico-financeiro de um país, obrigando os governos a redefinir suas prioridades. A questão hídrica recebeu atenção especial devido à necessidade de higienização de mãos e ambientes para proteção do contágio pelo vírus responsável pela doença. A aprovação do novo Marco Regulatório do Saneamento Básico foi acelerada em votação no Congresso Nacional quando veio à tona o panorama vergonhoso do saneamento básico em nosso país.
3) Dispersão de recursos financeiros na elaboração e implantação de projetos que realmente impactem a qualidade dos recursos hídricos
Os três planos anteriormente citados (plano de recursos hídricos, plano de segurança da água e plano se segurança hídrica) estabelecem objetivos e metas, porém nem sempre definem os recursos necessários para realização das atividades para atingi-los, pois seu cálculo depende de estudos elaborados por órgãos e instituições diversas nos três níveis de governo. Via de regra os governos estabelecem um recurso financeiro a ser disponibilizado para executar o plano, na maioria das vezes insuficiente para atender o plano em sua plenitude.
Poder-se-ia adotar a metodologia adotada pelos Planos de Segurança da Água, na qual utiliza-se os seguintes conceitos:
Caracterização de riscos - a definição de medidas de controle deve basear-se na priorização de riscos associados a um perigo ou a um evento perigoso. Na literatura científica encontram-se variadas formas para definir risco. A mais comum considera um risco como sendo a probabilidade de ocorrência de um perigo causador de danos a uma certa população a ele exposta num determinado intervalo de tempo e considerando a magnitude desse dano. Um risco pode, assim, traduzir-se pelo produto da probabilidade de ocorrência de um acontecimento indesejado pelo respectivo efeito causado numa determinada população. Os eventos perigosos com maior severidade de consequências e maior probabilidade de ocorrência devem merecer maior consideração e prioridade relativamente àqueles cujos impactos são insignificantes ou cuja ocorrência é muito improvável.
Priorização de riscos - a avaliação dos perigos identificados, usando uma metodologia de priorização de riscos, assenta, genericamente, numa apreciação baseada em bom senso e no conhecimento aprofundado das características do sistema em apreciação, podendo definir-se para tal uma matriz de classificação de riscos semi-quantitativa. Assim, para avaliar o risco associado a cada perigo, estabelece-se a probabilidade dele ocorrer, através de uma Escala de Probabilidade de Ocorrência, e as consequências para a saúde da população abastecida, através de uma Escala de Severidade das Consequências.
Adaptando-se esta definição para a situação dos recursos hídricos, teríamos no Relatório de Situação que embasa o Plano de Recursos Hídricos, que identifica todos os aspectos que contribuem para a perda de qualidade ou decréscimo da quantidade dos recursos hídricos necessários à finalidade a que se destina.
A partir desse levantamento estabelece-se a probabilidade dele ocorrência de cada fator que impacta negativamente os recursos hídricos, por meio de uma Escala de Probabilidade de Ocorrência, e as consequências para a qualidade dos corpos d’água, através de uma Escala de Severidade das Consequências.
A partir do momento em que o Comitê de Bacias eleja suas prioridades em função do risco representado pelos fatores que impactam negativamente os corpos d’água da bacia, os recursos financeiros (geralmente insuficientes para atender as metas estabelecidas no Plano de Recursos Hídricos), poderão ser melhor utilizados visando reverter a situação existente.
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NÍVEL TECNOLÓGICO:
1) Dificuldades em atender os quesitos necessários para classificar os corpos d’água (CONAMA 357/2005)
O enquadramento dos corpos d´água consiste em um dos instrumentos de Gestão dos recursos hídricos no estabelecimento da meta ou objetivo de qualidade da água (classe) a ser, obrigatoriamente, alcançado ou mantido em um segmento de corpo de água, de acordo com os usos preponderantes pretendidos, ao longo do tempo.
O enquadramento busca “assegurar às águas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que foram destinadas” e a “diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações preventivas permanentes (Art. 9º da Lei 9.433 de 1997)". Mais que uma simples classificação, o enquadramento dos corpos d´água deve ser vistos como um instrumento de planejamento, pois deve estar baseado não necessariamente no seu estado atual, mas nos níveis de qualidade que deveriam possuir ou ser mantidos nos corpos d´água para atender às necessidades estabelecidas pela comunidade.
A classe do enquadramento de cum corpo d´água deve ser definida em um pacto acordado pela sociedade, levando em consideração as prioridades de uso. A discussão e o estabelecimento desse pacto ocorrerão dentro do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH, estabelecido pela Lei da Águas. O enquadramento é referência para os demais instrumentos de gestão dos recursos hídricos (outorga, cobrança, planos de bacia) e instrumentos de gestão ambiental (licenciamento, monitoramento), sendo, portanto, um importante de ligação entre o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA (*4).
Para classificar as águas de acordo com os critérios estabelecidos na Resolução CONAMA 357, devem ser efetuados análises físico-químicos e microbiológicos, para verificação do atendimento aos parâmetros fixados para cada classe.
De acordo com o “Panorama do enquadramento dos corpos d’água no Brasil elaborado pela Agência Nacional de Águas – ANA” em maio/2007 fica evidente que, apesar do enquadramento dos corpos d’água existir no Brasil há trinta anos, ainda é muito pequena a implementação deste instrumento.
Talvez um dos motivos seja justamente o custo na realização das inúmeras análises para definição da classe do corpo d’água. Além disso nem todos os laboratórios são considerados aptos para realizar tais análises, sendo – a depender do Estado da federação, exigido credenciamento junto ao INMETRO ou outro órgão de controle ambiental. Nesse sentido, as Universidades, Centro Universitários e Faculdades com respeitados projetos realizados na área de caracterização dos recursos hídricos poderiam ser fontes de informação sobre o estado do corpo d´água. Outra razão seria a prioridade que os governos dão à questão hídrica, colocando-a muitas vezes a classificação em segundo plano.
Isto talvez impeça a maioria dos Planos de Recursos Hídricos não definirem metas de enquadramento, seja porque desconheçam o enquadramento real (não aquele definido pelos governos) mas também pelas dificuldades em implantar as ações necessárias para enquadrar os corpos d’água para o uso a que se pretende.
O enquadramento dos recursos hídricos, além de ser um dos instrumentos de gestão, se constitui talvez na única forma de avaliação efetiva se um Plano de Recursos Hídricos está atingindo sua meta. Isto porque o enquadramento, associado ao monitoramento sistemático, pode indicar se o corpo hídrico apresentou melhora na qualidade da água ou houve retrocesso na sua classificação.
Em um país de tamanho continental como o Brasil, com realidades geográficas, culturais e socioeconômicas tão díspares, com dificuldades de acesso a centros de pesquisa e laboratórios aptos a realizar análises como as estabelecidas na resolução CONAMA 357/2005, faz-se necessário ter a coragem de buscar alternativas que, se não alcançarem o nível de detalhamento desejável pela Resolução, ao menos permitirão ter uma noção do estado dos corpos d’água dentro de uma espaço de tempo compatível com a elaboração e implementação dos Planos de Bacia.
Uma das possíveis soluções para este impasse, seriam:
● A adoção de Kits de campo para análise de alguns parâmetros para avaliação da qualidade da água (atualmente existem diversos Kits que permitem boa precisão);
● Realização de convênios com Universidades e Instituições de pesquisa para a realização de análises mais complexas;
● Realizar somente análises de elementos ou substâncias químicas que tenham probabilidade de ocorrência face estudos do diagnóstico da bacia realizado no âmbito dos Comitês de Bacia.
Necessidade de adoção de tecnologias inovadoras
A qualidade dos corpos d’água está relacionada à poluição por fontes difusas e pontuais de lançamento de esgotos domésticos, industriais, defensivos agropecuários, pela drenagem urbana e resíduos sólidos.
Diversas são as tecnologias de tratamento de esgotos domésticos ou industriais. As plantas de tratamento de esgotos estão sujeitas ao licenciamento ambiental, que por sua vez é concedido mediante avaliação do processo de tratamento de acordo com as legislações ambientais específicas e normas da Associação Brasileiras de Normas Técnicas – ABNT.
Atualmente existem tecnologias inovadoras que, além dos processos tradicionais, se constituem em soluções que minimizam a poluição/contaminação das águas. Infelizmente alguns desses processos de tratamento não podem ser colocadas em prática por não serem objeto de licenciamento dos órgãos ambientais, devido à falta de parâmetros estabelecidos em legislação ou normas técnicas.
Garantir a participação da sociedade de forma qualificada
Os Planos de Gestão de Recursos Hídricos (à exceção do Plano de Segurança da Água) pressupõe a participação da Sociedade Civil Organizada ao integrar os fóruns de discussão de políticas públicas que, entre outras questões, dão origem aos Planos de Gestão.
A participação da sociedade civil organizada é importante, pois incorpora a visão da sociedade sobre a questão hídrica. Visão esta embasada no conhecimento empírico e experiências individuais e coletivas da sociedade.
Infelizmente muitas vezes esta participação carece de um certo conhecimento técnico sobre as questões que envolvem a gestão dos recursos hídricos ou da administração pública, dificultando o entendimento por parte dos representantes da sociedade sobre os assuntos que são tratados nos grupos de trabalho e fóruns onde assuntos relevantes são discutidos. A falta de conhecimento pode levar ao desestimulo à participação ou mesmo à desconfiança de que estão sendo usados como massa de manobra por setores governamentais. Há, portanto, necessidade de qualificar adequadamente a sociedade para que possa participar dos fóruns de discussão de políticas públicas onde são gestados os diagnósticos, planos e ações destinados à proteção, manutenção e recuperação dos corpos d’água de uma bacia hidrográfica.
Esforços tem sido desenvolvido por órgãos governamentais e universidades no sentido de criar cursos online ou presenciais para capacitar a sociedade em geral, sobre assuntos relacionados à recursos hídricos. Além de ampliar essas capacitações, entendemos que esforços devem ser realizados em outras frentes tais como:
● Capacitação contínua dos membros dos diversos conselhos municipais de meio ambiente, saneamento (quando houver) e saúde, em que a questão hídrica seja tratada de forma sistêmica;
● Inserir o tema recursos hídricos na grade escolar desde a pré-escola até o nível médio, de forma transversal com outras disciplinas;
● Incentivar a utilização por parte dos professores de técnicas de campo como “o estudo do meio” para que os alunos vivenciem a experiência de conhecer o entorno da escola, levantando suas características físicas, históricas e culturais;
● Constituir Comitês de Bacia Mirim nas escolas, objetivando o desenvolvimento do pensamento crítico, ativista e empreendedor;
Necessidade de desenvolver mecanismos de informação e comunicação de massa para a população
O exercício da cidadania começa dentro do lar e se aprimora no ambiente escolar e no convívio social. O acesso à informação é quesito fundamental para a construção do conhecimento, formação e conceitos e adoção de práticas nas mais diversas áreas do comportamento humano.
Participar ativamente das políticas de gestão dos recursos hídricos, seja em que nível for - municipal, estadual ou federal – exige conhecimento, disponibilidade e vontade de querer mudar o estado das coisas. Nossa população não está acostumada a ser pró-ativa no que se refere a participação popular. Isto é cultural e suas raízes remontam à época da colonização e a forma como nosso país se formou.
No entanto novos ventos sopram! As políticas públicas, especialmente as sociais (nela destacando-se o setor saúde) e ambientais, pressupõe a participação mais ativa da sociedade. Neste contexto, alguns caminhos podem ser trilhados para garantir acesso à informação à todas as camadas da população:
● A mídia (falada e escrita) deveria ser mais atuante, no sentido de levar informação ao público em geral sobre as questões ambientais de forma permanente e não apenas estimulada por assuntos pontuais do noticiário como enchente ou secas;
● As redes sociais atualmente se constituem em um grande e poderoso instrumento de informação. São usadas para o bem quando divulgam informes sérios baseados em pesquisas científicas, mas podem se transformar em fonte de confusão quando veiculam mentiras ou as famosas “fake news”. Deveria haver formas de evitar a divulgação de notícias falsas por meio das mídias sociais, mas na impossibilidade concreta, os cidadãos devem ser orientados a buscar informações seguras e fidedignas;
● Todas as ações de governo devem ter transparência total. O cidadão comum deve ser estimulado a verificar que ações são desenvolvidas pelos governos na área de gestão hídrica. Por sua vez, os governos devem disponibilizar aos cidadãos de forma clara e de fácil compreensão, o que está sendo feito para garantir que os recursos hídricos tenham qualidade e quantidade adequada ao fim a que se destina;
● Em um mundo digital, a maioria das informações são repassadas por meio eletrônico, enquanto boa parte da população não tem acesso, ou pior ainda, não sabe lidar com as ferramentas disponíveis do mundo tecnológico. Esta situação tem que ser alterada, seja disponibilizando internet a baixo custo a toda a população, seja integrando todos à era digital. Caso contrário além do fosso social, o fosso tecnológico será mais um fator da cruel desigualdade social no país.
Excelente ensaio . Apresenta os principais conceitos e princípios envolvidos com a gestão da água no país . Muito esclarecedor. Parabéns aos autores